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quarta-feira, novembro 29, 2006

Diálogo sobre o Desenho IV


Mar,

Para discutirmos a respeito do Eu que se pronuncia no desenho não poderemos evitar a discussão específica sobre o Eu. Aqui a pergunta não é Quem sou eu?, mas O que é Eu?
O pronome da primeira pessoa do singular, a entidade metafísica de uma pessoa, aquilo que nos é próximo na mesma medida em que nos é impossivel tocar. Sem a pretensão de responder a esta indagação descabida, reflito sobre o Eu-desenho notando que Eu é a palavra que serve ao discurso de todos e não caracteriza ninguém. Por isto, cada desenho deve registrar no Eu o seu próprio enigma.
Curioso que Eu também sirva de prefixo para designar a idéia de bem ou do belo, como nas palavras eufonia(som agradável) ou eucrômico(que tem cor bela), ou tornando-se Ev, quando sucedida de palavra começada por vogal, como Evangelho - os testemunhos sagrados. O desenho deve revelar o Eu como idéia do que há de bom e belo em cada um que é capaz de vê-lo. Desenhar não é exclusividade dos que fazem, mas também dos que são capazes de enxergar. Um desenho não revela apenas o autor em si, mas sobretudo mostra alguma outra coisa essencial e intrínseca ao próprio ser humano. Seria todo desenho uma forma de Evangelho? O testemunho de seu lado bom e verdadeiro?
Isto me leva a pensar sobre uma das formas mais antigas do desenho e da pintura: o auto-retrato. No momento em que o artista se predispõe a representar a si próprio ele passa diretamente a uma espécie de pesquisa estética que pretende revelar não o que se expressa na superfície, mas o que há por trás da imagem. O retrato, até o advento da fotografia em si, teve um sentido de mero registro da imagem das pessoas que as encomendavam, da corte ao clero, das famílias aos governantes, e seu uso pragmático ocultava um outro sentido, o de instrumento do poder. Os governantes e suas famílias recebiam uma maquiagem pictórica para sempre parecerem dignos, poderosos e bonitos, e que hoje em dia só se alcança com a "magia" do Photoshop. Por outro lado, ao se retratarem, ficava clara a intenção de uma outra busca. Em frente ao espelho, vemos o avesso de nós mesmos, ou seja a idéia invertida que temos do Eu. Desta dobra surge algo mais importante do que a representação, a interpretação. Ou seja, segundo Nietsche, a única verdade possível.
O desenho revela, antes da beleza, esta verdade. Não a verdade do autor, mas do seu espectador. É como a figura do herói, que só é amado pelo povo por revelar o lado bom de cada pessoa. O resgate do olhar ao desenho é a salvação do próprio gesto para com a vida.
Joseph Campbell falou a respeito das duas figuras públicas; o herói, a figura pública antiga, amada por servir à sua comunidade; e a celebridade, produzida pela modernidade, desejada por servir somente a si própria. A propaganda, esta arma criada pela era Hitler, é a máquina onde se reproduzem as celebridades. Deve ser este o avesso do desenho, a propaganda, a imagem criada para esconder o que não se vê fora dos holofotes. A celebridade é a figura pública na era de sua reprodutibilidade técnica, diria Walter Benjamim, o filósofo que questionava a quintessência das obras de arte singulares como o desenho. A propaganda é o trabalho da celebridade, que tem sua vida nas vitrines da mídia para despertar a curiosidade da sociedade das imagens vazias.
Você não acha que o desenho, ao menos enquanto princípio, poderia vir a ser cada vez mais o trabalho do herói, ou seja, aquele que não pensa em fama e só vem a ganhar notoriedade quando reflete muito a sua comunidade? Ou a comparação é alucinada?
Entendo a posição de Vilém Flusser em ver no desenho um engôdo. Ao perseguirmos a forma, pela linha, pela sombra, pelas cores, buscamos sistematicamente o retorno à natureza. Nunca me esqueço de quando visitei o Museu de Mineralogia de Ouro Preto e da minha sensação, ao ir embora de lá, de inutilidade da arte. As formas atingidas pelo tempo sobre aquelas matérias primas eram a prova da declaração de Flusser. E todo documento de cultura parece ser o legado da inveja do homem diante da natureza.
A natureza que não erra jamais. No máximo ela segue um curso que nos ameaça. A falha é exclusiva àqueles que tem a intenção de chegar a algum lugar e se perdem no meio do caminho. A própria palavra falha, quando usada para a natureza, não expressa equívoco, apenas denomina um desenho que são os nossos olhos que projetam sobre a Terra.
Será que aquilo que nos salva desta condição é o momento em que não seguimos a correnteza, o ponto onde os seres humanos são invejados pelo céu - a possibilidade do erro?
Talvez para nós, a verdade de um caminho se revele no desvio de nossa intenção e a ignorância nos leve a novas fronteiras, e o tremor das mãos nos leve às linhas dos caminhos desconhecidos, nos desdobrando possivelmente naquilo que o físico Mário Schenberg chamou de realidade paralela.
Será o retorno ao desenho o retorno ao herói? O traço inicial da formação de uma sociedade mais conectada com seu desejo?
As pessoas desenham pouco, não por não serem capazes de fazê-lo, mas por terem perdido o desejo. E por temerem a dor desta descoberta, a dor o início, a dor da infância, a dor do herói. O desenho revela a fragilidade do conhecimento, da técnica, o medo do aprisionamento levado ao nível zero do conhecimento.
Por isto, é compreensível a fuga do desenho.
Antes da palavra delineou-se o impulso de um gesto primário.
Imagino os olhos de Deus e dos homens se abrindo, não necessariamente nesta ordem, antes de se encontrarem com o verbo; eles teriam visto as formas delineadas pelas folhas ao vento, pela água na encosta, pelo risco na parede, e teriam quiçá descoberto em si mesmos uma outra intenção, tão oculta quanto perigosa.
Em princípio era o desenho?

Beijos esfumados,

Fer

(imagem: desenho de Fernando Chuí e Marcia Tiburi)

4 comentários:

Anônimo disse...

Bem, Fer... primeiramente, adorei o discurso sobre o "Eu"!
Quanto ao questionamento sobre o 'desenhar do cego', compreendi; no sentido ideal da ação.
Mas... seria ele (o cego) capaz de 'enxergar' imagens, sem nunca tê-las visto - fisicamente -, apenas pelo mundo das idéias. Achava ser necessária a "substância primordial", como lhe disse. Enfim.
Mas como vc mesmo disse: "Talvez para nós, a verdade de um caminho se revele no desvio de nossa intenção e a ignorância nos leve a novas fronteiras, e o tremor das mãos nos leve às linhas dos caminhos desconhecidos..." (Realidade paralela... gostei!)

beijo!

Fernando Chuí disse...

Rafa, acho sim que um cego pode enxergar, pois enxergar é metáfora para a percepção das coisas. A substância primordial pra mim é a sensibilidade e a visão em si é só uma camada; acho que a gente enxerga mesmo é através desta. Beijos!

Anônimo disse...

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Marcia disse...

Oi Fernando, td bom?
Gostaria de solicitar autorização para adaptar este texto e publicar em uma apostila de Lingua Portuguesa.
Segue meu email para contato
marciasato1000@gmail.com