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domingo, junho 24, 2007

Parábola


Ao alcançar o topo da montanha,
meta de uma vida inteira de estratégias e batalhas,
o homem teve a impressão de não haver mais limites para si.
Nesse instante, ajoelhou-se
como que em um reflexo natural de sua redenção.
Iludido, abaixou a cabeça e olhou para baixo,
buscando enxergar o caminho trilhado
e se regozijar ante à longa e heróica trajetória.
Todavia, não vislumbrando mais para onde subir,
não pôde deixar de se curvar diante do fato
de que não podia por fim tocar o firmamento.
A vitória lhe trazia o claro indício do fracasso.
Fragilizado, mais pela constatação
do que pelo cansaço da escalada,
teve o impulso de se jogar dali do cume
para o início de tudo, reencontrar o marco inicial,
o ponto zero; fechar a parábola,
cumprir o restante do arco que o separava das pedras.
Naquele segundo, mirou sem querer
o desenho do próprio rosto entre os rochedos.
Percebeu que agora só lhe restavam dois caminhos possíveis.
O primeiro era apagar-se daquela maneira,
como um raio que invejasse as estrelas.
E um outro, que se fez evidente
como a dança viva e morta do zodíaco
a enlaçar futuro e passado.
Esqueceu então os pontos da paisagem
que definiam onde acabava a montanha
e onde começava o homem.
Desta forma, ascendeu ao céu.
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Na vida, os limites são somente linhas divisórias
entre aquilo que se imagina desejar
e aquilo que se permite viver.
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(texto e desenho de Chuí)

terça-feira, junho 12, 2007

Soneto de Infidelidade

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Soneto de Infidelidade
(Para Marcia, minha eternidade)
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De tudo em ti, o que eu mais desejo

é justo o que eu ainda desconheço.

Da flor, o ocaso; o pólen de um começo

que te faz renascer a cada beijo.



Daquela que eu amei noutro festejo

o que restou eu hoje já me esqueço.

A tua nova pele hoje eu teço

e já não és a mesma quando eu vejo.



Confesso meu deslize e falo sério:

Te traio contigo mesma todo dia

e espero então que me traias de volta.



Pois a paixão de ontem é vazia.

Mortal e eterno o amor é uma revolta

que arde os nossos corpos no mistério.
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(desenho extraído da HQ Indecifráveu de Chuí)

domingo, junho 10, 2007

A Ciranda


Qual é o seu nome?
Lá-lá-la-lá...
O meu? Escolha um você, tenho vários.
Recebo novos nomes a cada vez que eu mostro uma face.
Eu sei que dizem que eu sou tudo que se opõe ao bem,
que eu sou o vício e a moléstia,
o agente de todo infortúnio que acomete à dita civilização.
Ah, não dê bola pra gentinha. Lá-lá-la-lá...
Nada há de nos importar agora,
o destinou fez com que nos encontrássemos.
Você me pergunta se foi o azar? Qual a diferença, não é?
Não terá sido esta estranha forma de fome
que você agora experimenta?
Certamente a dúvida, sempre a dúvida,
trouxe você para perto de mim.
Foi ela, afinal, aquela que fundou a minha mitologia.
Sabe, você tem uma beleza que jamais ousaria descrever.
E eu, você não sabe bem o porquê,
mas desperto o seu apetite ou coisa que o valha.
Lá-lá-la-lá...
Ah, qual é o seu nome mesmo?
Confesso que não me importo, a bem da verdade,
com esse tipo de formalidade.
Quem deseja a alma não se liga a nomes.
Um rosto sugere nomes,
mas um nome não revela um rosto.
O seu, contudo, eu pretendo guardar.
Talvez não o seu nome atual,
mas o nome, este, que eu lhe dou agora
no momento em que você fecha os olhos
e me deixa entrar. Lá-lá-la-lá...
É preciso cuidado com o lugar de onde você me vê.
Eu sou exatamente aquele que nega sua visão.
Aquele que tenta seu coração.
Por mais que você tente negar. Lá-lá-la-lá...
Pensar que eu sou uma forma fora do seu ideal,
fora de você, é brincar com fogo.
Pois, apesar dos meus cabelos louros
e das minhas bochechas coradas,
meu único desejo é alisar seus cornos.
Lá-lá-la-lá...
Pois, enquanto você me vê como uma menininha,
eu é que vou brincar com a sua forma de bode,
doce, lépida e pueril,
como quem cantarola uma ciranda.
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..
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(texto e desenho: Chuí)

sexta-feira, junho 01, 2007

Tem Cará, Tem Cascudo e Tem Traíra (Cordel Urbano III)


Ontem foi a estréia do Samblues, minha parceria com Guappo.
Que maravilha que foi.
Não vou me alongar, mas devo dizer que não me lembro de ter tocado numa sintonia tão boa como na noite de ontem no Syndikat Jazz Club. O Guima, amado camarada e guitarrista, chegou para o segundo bloco - mais maravilhas.
No meio do processo de releituras de sambas, uma música nova surgiu, quiçá a primeira faixa de Samblues - o disco.
Falei um dia pro Guappo:
-E aí, fez alguma música?
-Não. Mas ontem eu entrei num boteco e um caboclo me disse: Tem cará, tem cascudo e tem traíra...
Depois de um tempo, a música se fez. Ontem, nosso caríssimo amigo Hamer subiu ao palco e a platéia se juntou ao refrão:
-Tem cará, tem cascudo e tem traíra!
Abaixo vai a letra de mais este cordel urbano.
Aos amigos que ontem engrossaram esse coro: Obrigado!
Beijos a todos!
..
Tem Cará, Tem Cascudo e Tem Traíra
(Cordel Urbano III)

Domingão, eu passei no boteco
pra beber e assistir o futebol.
Já pedi uma branquinha ao Maneco.
E pro jogo, uma Schincariol.

Um caboclo de lá do balcão
já me encara bem feio e me pisca.
Eu senti como se eu fosse a caça
que acabasse de morder a isca.

Timão tinha que ganhar do peixe
ou então já tava eliminado.
Já no início, perigo de gol,
mas o chute saiu pelo lado.

E eis que quando esquentava a partida,
o caboclo levanta e se vira.
Olha bem nos meus olhos e diz:
“Tem cará, tem cascudo e tem traíra.”

Tem cará, tem cascudo e tem traíra
Eu pensei, que diabos se passa?
Será que ele era um tipo de bruxo
ou efeito surreal da cachaça?

Nem tentei responder, resolvi
ficar quieto e já deixar pra lá
Desviei meu olhar do sujeito
e no jogo fui me concentrar.

A partida seguiu zero a zero.
No intervalo eu virei outra pinga
O caboclo assistia de costas.
Devia ser um tipo de mandinga.

Meia hora do segundo tempo
e só dava o Timão no ataque
O coração na boca era um barco
Afundando ao som de um tique-taque.

No finzinho do segundo tempo
Falta fora da área e o juiz pira.
Dá um pênalti pra nós e ouço outra vez:
“Tem cará, tem cascudo e tem traíra.”

Tem cará, tem cascudo e tem traíra
Eu pensei, que diabos se passa?
Será que ele era um tipo de bruxo
ou efeito surreal da cachaça?

O atacante se posicionou
E a torcida gritou sem cessar
O seu coro de mil pescadores
"Caiu na rede é peixe ê-ê-á!"

Lá foi ele no meio de tudo
E no canto direito ele mira.
Bola fora e agora eu que grito:
“Tem cará, tem cascudo e tem traíra!”

E a pancada rolou na geral
E a torcida invadiu o campo inteiro
Gritando “traidor” pro atacante
que fugiu escoltado pro chuveiro.

Tem cará, tem cascudo e tem traíra!
E o caboclo sumiu na trapaça!
Será que ele era um tipo de bruxo
ou efeito surreal da cachaça?
..
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(texto e desenho: Chuí)