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quarta-feira, abril 18, 2007

Violência


Certo dia, o muro em frente à minha antiga casa
amanheceu com a seguinte pergunta
registrada em tinta-spray vermelha
em letras tortas sangradas:
..
QUE VIOLÊNCIA VOCÊ PRATICA?
..
Não pude compreender aquele deboche.
Parecia que o próprio diabo havia se esgueirado por aquela ruela para deixar o recado para minha consciência.

QUE VIOLÊNCIA VOCÊ PRATICA?
..
Senti-me desafiado e desafiador ao mesmo tempo.
Por ser indagado por aquela questão insólita e também estranhamente impelido por aquela pichação. ..

QUE VIOLÊNCIA VOCÊ PRATICA? ..

Durante muitos meses aquela sentença me acompanhou como se eu fosse o rei da alguma droga de lugar e ela, o meu bufão. ..

QUE VIOLÊNCIA VOCÊ PRATICA?
Um dia, peguei-me amassando raivosamente um folheto do China in Box ao olhar para a paisagem.
Ao me dar conta, larguei imediatamente o papel que caiu no chão como uma vítima desmaiada.

QUE VIOLÊNCIA VOCÊ PRATICA? ..

Poucas semanas depois, percebi minha irritação ao falar ao telefone com um amigo.
Tive vontade de desligar o telefone, como se o aparelho fosse um rosto que pudesse ser esmurrado.

QUE VIOLÊNCIA VOCÊ PRATICA?

A pergunta passou a me perseguir dia após dia, noite após noite.
Percebi que agora guiava mais rápido, mais displicente, mais agressivo.
Dirigia com um braço pra fora do carro, maldizia a tudo que se tornasse uma imagem de obstáculo na minha linha reta, a lentidão das senhoras motoristas, a vida curta dos motoboys, os engarrafamentos, os semáforos.
Lançava palavrões ao vento.

QUE VIOLÊNCIA VOCÊ PRATICA?

Lembro-me do dia em que gritei com uma telefonista que queria me vender algum pacote sei-lá-de-que-catzo.
Saí de casa e mostrei a língua para uma criança na rua.
Assoviei para a mocinha que passava com o cachorrinho da casa onde trabalhava.
Cuspi no meio da rua.
Aquele punhado de letras mal grafadas se imprimia em meu cérebro, rabiscava-se em sua extensão como estilete, mantendo meus punhos agora constantemente fechados.
Eu sentia que algo estava para acontecer.
..
QUE VIOLÊNCIA VOCÊ PRATICA?
Certa manhã, aconteceu.
Nem deve ter sido pela manhã, mas foi ao acordar que, procurando com meus olhos vis e grudentos aquele refrão de canção invisível, vi que a frase havia sido apagada, sobrepujada por outra pichação, em letras ainda mais borradas.
Não me perguntem o que foi grafado por cima, eu não faço idéia.
Não obstante, eu podia ver, por trás de tudo, resquícios da palavra VIOLÊNCIA; agora um sussurro rosado por baixo de um outro nome que nunca pude reparar qual era.
Como se o bufão houvesse falecido e deixado como herança para mim o seu eterno riso.
VIOLÊNCIA

Parei de mirar o muro.
Voltei a abrir as mãos, em pouco tempo retomei a calmaria.
Porém, antes de me mudar dali tempos depois, em uma espécie de recaída, dei uma olhada sorrateira naquela parte do muro.
A gente devia aprender com a mitologia; mas não, eu fiz igual a Orfeu.
Olhei para trás.
As palavras que sobrepunham a indagação diabólica tinham sido parcialmente apagadas, provavelmente pela chuva, como uma piada de mau gosto vinda dos céus.
Li, assustado.

VOCÊ PRATICA?

Sinto-me pichado até hoje, parcialmente manchado com um sentimento que não posso definir.
Como se séculos escondessem uma pintura medieval por baixo de minha própria fachada de superfície lisa.
Alguma coisa entre a vergonha, o cinismo e a sabedoria.

PRATICA?
.
(Texto de Chuí / Desenho extraído de "Indecifrável" de Chuí - work in progress)

10 comentários:

Hamer Palhares disse...

Bárbaro!

Anônimo disse...

Chuí, esse foi dos seus textos que li até agora, o que mais gostei. Ele é totalmente imperativo e ao mesmo tempo, subjetivo. É daqueles que depois que se lê, não mais se tem paz ou se encontra a paz. Adorei. Beijo, parabéns.

Yone

Anônimo disse...

A pergunta que não quer calar...
Todos nós temos esse lado oculto, as intenções premeditadas de violência, e depois desse texto, fiquei me perguntando, agora tenho consciência e não posso permanecer com esses pensamentos e algumas atitudes. E que o tempo nos ensine.
Adorei o texto, sempre um aprendizado.

Anônimo disse...

Reflexivo!;)

Anônimo disse...

Estou abalada com esse texto! Foooooorrrrrtttteeeee!!!!!!!

Luiza Christov disse...

Pratico...sei que pratico...hoje especialmente sinto e sei que pratico...assisti Estamira...fiquei muda...sem logos diante de tanta revelação de que...pratico...participei de uma assembléia pra discutir e decidir o que fazer com o tal sucateamento do ensino público...lixo...no filme...na unesp...já estava latente a sensação de que pratico esta violência de estar no planeta e encher ele de lixo ou de ficar sem logos diante do lixo... e acabo o dia lendo o poema do Fernando. Pratico, Fernando. Pratico, Marcos Prado (criador do Estamira). Pratico, Estamira. Pratico lixo e fico calada. A poesia do Fernando me pegou triste e me fez falar da tristeza. Obrigada, Fernando. Obrigada, poesia.

Anônimo disse...

Belíssimo texto. Talvez sirva para nos lembrar que uma das violências que praticamos é recalcar sem consciência a violência que praticamos, ao emsmo tempo em que disfarçamos as violências concretas e simbólicas que sofemos.

Anônimo disse...

"Como uma piada de mau gosto vinda dos céus."
É quase isso mesmo. Divino o seu poema!
Agora me indago: que tipo de violência venho eu cometendo? - Não sei dizer.
Ando aprendendo que aquilo que fazemos ao outro é, nada mais, do que o que fazemos para nós próprios. Mas por que não o oposto?!
(...)

beijo!

Anônimo disse...

Cheguei pela primeira vez aqui e que coisa este seu texto! Sinto-me pichada eu, agora.
Fernanda

Fernando Chuí disse...

Então seja benvinda, Nanda. E deixe e-mail para retorno na próxima, heim?
Beijos do Chuí