
Juro: mais do que desenhar o Popeye e a Graúna, mais do que fazer dobraduras, mais do que comer azeitonas verdes, quando eu era garoto nada me dava mais prazer do que jogar bola.
Nada original neste país, admito. Mas deixemos claro que jogar bola é muito diferente de futebol. Futebol requer regras claras e pessoas em busca de um resultado coletivo. Jogar bola não, faz parte do campo das fantasias individuais. Eu, como tantos brasileirinhos, jogava bola todo o tempo.
Uma diferença, talvez. Como eu passava muito tempo sozinho em casa e não podia estar no campo com gente de verdade, eu jogava sozinho no meio da sala, com bola invisível, gramado, traves e imensas torcidas imaginárias. A sala era a folha de papel para meus desenhos das jogadas.
A minha bola parecia-se muito com aquela que seguia as legendas daqueles desenhos animados cantantes. Algo entre branca e incolor, como um fantasminha camarada.
Quando eu estava no carro, minha bola imaginária saía do meu pé, rebatia nos postes das ruas e voltava. Ninguém percebia as minhas embaixadinhas constantes por baixo do banco. As regras se refaziam a cada instante.
Somente uma era permanente e irrevogável: todo dia, eu deveria driblar o time inteiro e fazer um gol incrível seguido de uma comemoração como o da quebra de mil anos de abstinência de títulos.
Juro: eu pulava nas almofadas da sala, rolava pelo tapete da entrada, ralava o joelho nos tacos de madeira. Ninguém nunca viu, só meus amigos animados.
As paredes eram os zagueiros e a trave era a porta de vidro que dava para o quintal.
Meu jogo nunca acontecia no quintal, meu estádio era a sala e minha platéia era a tela da TV ligada em desenhos animados de Hanna Barbera como Chuvisco, Plic&Ploc e os Jetsons. Eu jogava pra galera - da Barbera.
Quando eu comecei a jogar de verdade com meu irmão e os caras da rua, eu era o menor de todos e sempre ficava restrito à defesa. Todo mundo fazia gols e eu recebia aquele tapinha nas costas e frases de consolo como “foi bem hoje, Fê” ou “o Fê marca direitinho”. E minha artilharia seguia crescente no campeonato estadual da sala de TV.
Mas aconteceu de eu ir crescendo e o pessoal da rua foi me dando mais espaço na linha.
Deixei a defesa e fui pro ataque. Nunca fui bom de estratégias. Meu universo particular não me desenvolvera táticas. Minha miopia atrapalhava a visão de jogo. Estraguei muitas jogadas por conta de meu não-futebol. Mas percebi que eu tinha um arranque bom e o sonho de dançar a la Garrincha. Fiquei bom de drible. E aprendi a chutar com as duas pernas. Fazia mais gols até com a canhota.
E um dia, juro: eis que aconteceu. Eu jogava contra um time de “maloqueiros” – era como o pessoal chamava os garotos pobres que jogavam com a gente no parque –, saí da pequena área com a pelota, driblei todo o time adversário e fiz o gol. Inacreditável, mas eu juro que foi assim.
“Aê, Fê!”, “Boa, Fê!”, “Golaço, Fê!”. Descobri aos treze anos que eu podia fazer aquilo mais vezes. Durante um tempo, fiz vários desses gols.
Apenas uma coisa não se repetia. A comemoração.
Alguma coisa não me deixava celebrar de forma efusiva. Sei lá.
Lembro-me bem de um garoto na minha classe do colégio, o Giuliano. Ele nem era craque, mas fazia muitos gols. Enquanto ele era o pecado da preguiça, o conhecido "banheira", eu era justo, dava "assistência" e voltava pra defesa depois do nosso ataque; e enquanto ele era o pecado da gula no meio da quadra, o famoso “fominha”, eu sempre passava a bola, era solidário.
Só uma coisa destruiria por completo minhas pretensões de atingir o meu ideal de nobreza humana. A cada gol que Giuliano fazia, ele comemorava loucamente, dando voltas pela quadra; seu rosto inchava, vermelho sanguíneo de satisfação e todos os garotos corriam atrás dele pulando sobre suas costas. Eu, quando fazia gols, corria lenta e sobriamente para o lado da quadra, como um soldado raso ao cumprir sua tarefa.
Giuliano era ira e soberba nas comemorações ao redor da quadra do Colégio. E eu, que almejava a estética humilde, cristã e límpida, por dentro era a inveja e a avareza olhando seus pulos de luxúria com o grupo.
Em algum momento de minha formação, devo ter incorporado uma idéia de que comemorar era algo pouco nobre. E isto se seguiu por muito tempo.
Vejo agora que os momentos vitoriosos são diamantes montados em relâmpagos; e celebrá-los é parte essencial dos partos de nossas experiências. Aos poucos perdi meu arranque, minha miopia aumentou. E com os anos, até mesmo o campeonato estadual da minha sala foi aos poucos perdendo a torcida animada que deu lugar a outras cores e melodias em minha vida.
Todavia nada disso importa agora, já que hoje em dia eu raramente jogo uma bola. Nunca mais vi o menino Giuliano dentro ou fora de campo. Nem sequer vejo mais futebol. Nem desenhos animados. Nem TV.
Acho que afinal eu nunca joguei futebol. Porém preservo a memória da bola invisível. Sei que ela está ainda aqui. Nem acredito que as memórias da nossa infância existam para que aprendamos lições com elas; acho que elas são como sonhos que a gente interpreta cada vez de uma forma e jamais se lembra de tudo.
Mas juro: a cada dia eu venho aprendendo a comemorar melhor os gols e pecados que hoje faço.
(texto e desenho de Chuí)