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segunda-feira, dezembro 08, 2008

Memória de Desenho


"- Pai, o demônio existe de verdade?
- Não, fio, não se ´ocê não olhar pra ele. E segue andan´u que em u´a hora a gente tá em casa.
- Tá bom, pai. Ma´ é que eu tô c´uma fome danada..."

Memória de Desenho

Fiz este desenho de memória ontem à tarde.

É curioso que, em desenho, chama-se "de memória", aquele que não parte da observação direta de um objeto. Qualquer forma de invenção figurativa no desenho leva o nome de memória. Estimulado pelo trabalho de um aluno de desenho que tive recentemente, um rapaz talentosíssimo - que trabalha como vigia noturno - criador de incríveis paisagens de memória em caneta BIC, fiz esta cena rural. Memória de um lugar que eu nunca fui, diga-se.

Só depois de finalizar o desenho, lembrei-me que eu passava por uma estradinha parecida com esta no Embu quando criança. Ao irmos para a chácara que tínhamos lá, meu pai sempre dava carona em nosso fusca para famílias como esse pai e esse filho da imagem. Confesso que eu, garoto, detestava. Ficava incomodado com pessoas estranhas ao meu lado, com cheiro de lama. Mas meu pai continuava levando essa gente pra cidade. À época, ele tinha ainda esperança em um país solidário.
Mas memórias nos levam a ver a mudança das coisas à nossa volta. Um dia, ao descrever já adulto o caminho para o Embu a uma amiga que viria à chácara, disse que era uma estrada de terra. Ao passarmos por lá, vimos que não havia nem sinal dessas estradinhas. Elas foram todas asfaltadas. E meu pai já não cogita dar caronas pelas estradas estatisticamente perigosas do Embu.

Junto com a lembrança da estradinha surgiu este mini-conto que postei acima. Pensei que memória, como no desenho, é sempre invenção.

Por isso, não vejo nada mais honesto do que lembrar bem das coisas. Com isso, quero dizer, lembrar as coisas para o bem - seja lá o que isso queira dizer. Quiçá pinçar as minúcias poéticas de cada experiência guardada na mente neurótica pra compor um cenário - senão justo, senão limpo, senão puro - ainda belo. E beleza, segundo o escritor francês Stendhal, é uma promessa de felicidade.

Pois se memória é invenção, o passado é uma ficção; e mais do que justos, creio que podemos ser bons escritores, bons desenhistas nesta vida. Para mim, estradas de terra continuam a ser percorridas a pé somente por famílias justas, belas e fortes. É o que o desenho me faz lembrar.

É a felicidade que eu inventei.


(textos e desenho de Chuí - clique na imagem para ampliar)

18 comentários:

Noubar Sarkissian Junior disse...

Que desenho lindo, Fernando!
Belo texto, também!
Lembrar é certamente inventar. Tornar o passado mais bonito: ressignificá-lo pra despistar o que pode haver de ruim.
sempre (sempre!) me impressiono com seu talento.
Um abraço
noubar

Anônimo disse...

Beautiful!

Anônimo disse...

Simples. Bonito! Giuls.

Denise Hennemann disse...

Adoro a beleza deste blog! Sempre me faz parar para contemplar...
Penso que as invenções decorrem de algum tipo de experiência, por vezes tida como esquecida, a que damos o nome de lembrança. É como a tese de que o sonho pode ser nada mais que a mistura de desejos com informações passadas e presentes.
É, a invenção é praticamente um sonho que a gente consegue compartilhar com os outros, com ou sem palavras...
Inventando e reinventando, a gente transforma preto e branco em colorido, e vice versa.
Abração!

Anônimo disse...

Charmoso com o interior de minas! As montanhas, as casinhas, a plantação e a conversa espontânea, simples e bonita da zona rural.
Amei, Fer!
Beijos,
Lara

Anônimo disse...

tu fez um baita desenho!!!!!!!!

Anônimo disse...

fê, querido, talento é talento e não se discute, apenas se mostra... excelente expressão da simplicidade rural que esperamos não se extingua nunca neste Brasil,caboclo, sertanejo viril!Você escreveu, festejou e nos levou
até essa pequena paisagem...que ficou como um quadro em sua memória de menino...Amei!!!

Anônimo disse...

Fê, o comment acima é meu...Luiza..quanto ao CD gostei do auto-retrato muito!Porém a segunda imagem que figura como um esqueleto achei um pouco fria...colocaria o auto-retrato frente e costas...

Anônimo disse...

Lindo demais!!!

Anônimo disse...

Oi Chuí, que lindo conto este. Me fez voltar à minha infância e trazer à
memória as estradinhas de terra com seus transeuntes cheirando à terra ou
lama dos quais eu era amiga de todos e adorava bater um dedo de prosa com
eles. Também como a memória do seu desenho, essas estradas não existem mais
assim. Obrigada por me trazer essa lembrança querida. Um beijo


Yone

Anônimo disse...

Chuí, você me fez entender o que é um blog, com esse post. Fez muita diferença saber de tudo isso, ver esse desenho lindo. Na batalha das informações, essa chegou direto na cabeça, no coração, na esperança perdida, na esperança estrebuchando no fundo do poço, contando às vezes apenas com vigia e uma caneta bic para dar conta de si. Abrazón, D.

Anônimo disse...

Fernando,

Obrigada! Sua arte é sempre um presente para os olhos e para a alma.

Um grande abraço
Eliane

Anônimo disse...

Fernando

Tanta coisa bela no desenho e no texto:
O desenho é contraditoriamente rico em detalhes e singelo no tema.
O diálogo fala daquela fome que é o diabo, e como há fome de tudo o que é
tipo, há tentação de todo o que é tipo.
Você se inspirar em seu aluno, não vice-versa, exemplifica o
educador-educando de que falou Paulo Freire.
Finalmente a memória das estradas de terra com gente decente andando nelas.
Ainda levo essa gente em meu carro, quando minha "intuição de segurança" diz
que posso, na esperança de não me esquecer de quem eu fui e ainda sou, que
minha alma anda a pé por muitas estradinhas...

Menezes

Anônimo disse...

Menezes, fiquei pensando como minha alma anda...Au

Anônimo disse...

Menezes, fiquei pensando como minha alma anda...Au

Anônimo disse...

ESTRADA DE TERRA

O desenhista
inventa-se na paisagem
cicatriz ingênua
da memória.

Au

Rafaela Gomes Figueiredo disse...

e como em eterno rascunho, a vida é cheia de desenhos e redesenhos...

o demônio a gente inventa também. ou, ao menos, a sua imagem; como as q vemos na tv e outros meios.

assim como o amor; a felicidade...

"É a felicidade que eu inventei." belo desfecho!

beijos

Anônimo disse...

Concordo com Stendhal sobre a beleza.... e tá cheio de promessa de felicidade por aí... é só olhar, focar.... :)

Teus desenhos, como sempre, lindos! Gostei muito dessa paisagem... me deu medo o diabo agachado ali... rs...

Beijão