
Décadas atrás, o compositor e biólogo Paulo Vanzolini escreveu a canção Praça Clóvis contando a historia de alguém que teve sua carteira roubada junto à foto de uma ex-namorada. “Na Praça Clóvis minha carteira foi batida/ Tinha 25 cruzeiros e o seu retrato/ 25 eu francamente achei barato/ pra me livrar daquele atraso de vida (...)” disse a letra, se eternizando no cancioneiro do samba paulista.
Nesta terça-feira, padeci do mesmo mal em frente a uma praça aqui na Lapa. Um motoqueiro levou meu celular e minha carteira. Tinha tudo dentro dela: RG, CPF, carteira de habilitação, etc.
Neste movimento de reaver minhas documentações, precisei fazer uma busca pela internet para descobrir a melhor maneira de fazer coisas como boletim de ocorrência, pedidos de segunda via, cancelamento de cartões e tudo mais.
Ao abrir uma página pelo Google, havia a notícia de que um vídeo de sexo com uma participante de um reality show havia sido espalhado pela internet. O vídeo estava na memória de uma celular roubado meses antes da notoriedade precária da moça.
Todo este panorama me fez pensar sobre coisas como memória, identidade, intimidade e pornografia.
Meu celular portava fotos da cidade apenas. Pedirei hoje a segunda via de minha identidade. O ladrão ficou com todo meu registro oficial, do dia em que eu nasci até o lugar onde eu voto. Mas o que ele levou não importa realmente, vão-se os anéis. O que importa é o que ele deixou em mim, algo entre raiva, dúvida e medo.
Eu não poderia agora narrar o que eu senti na coisa toda. Aí eu teria que falar do lugar de minha intimidade, e intimidade é tudo aquilo que não pode ser acessado por narrativas, fotografias ou vídeos pessoais.
Intimidade tem a ver com a memória de sentimentos que temos ou que pudemos outrora compartilhar com pessoas. Uma dor, um olhar, um gemido, coisas que só podem ser compreendidas interiormente. A narrativa destes eventos “pornografiza” as experiências. Como homens que traduzem suas aventuras sexuais em detalhes sórdidos aos amigos, para mostrar sua potência masculina de garanhão metropolitano (atire a primeira pedra quem nunca fez estas tolices). No momento em que se transpõe uma experiência a uma narrativa ou a um artefato de consumo, têm-se a pornografia.
Mas a intimidade, esta não será jamais tocada por tais recursos. A intimidade é o que fica em nós.
Não está em um corpo nu, mas no arrepio da pele.
A intimidade não é o fato, mas aquilo que dele me fere.
A intimidade não é o que eu escrevo, mas o que você é capaz de compreender.
A intimidade é o contrário da pornografia.
Não se pode pedir a segunda via de nossa intimidade.
Na Praça Marcelino Bressiani, minha carteira foi batida. Não tinha nenhum dinheiro, nenhum retrato.
(texto e desenho: Chuí)