Certa vez, um amontoado de átomos
adquiriu inexplicavelmente o desejo
de ser mais do que matéria em movimento.
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O criador, curioso ao perceber tal rebeldia
submergindo da luz e do caos,
decidiu, quase em um tom lúdico,
enviar àquela manifestação sete fadas
para lhe presentearem com dotes que o auxiliassem
na engenharia daquele novo e improvável universo.
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Voz, a primeira fada,
voou por entre os orifícios da cabeça
e soprou-lhe o dom de inventar sentidos próprios
nos sons que era capaz de emitir.
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Mãos, a segunda fada,
atravessou seus poros até atingir seus ossos,
seguindo os braços até as suas extremidades
e lá deixou a habilidade de transformar as formas à sua volta
apenas pelo contato com seus dedos.
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Paixão, a terceira fada,
rasgou-lhe o peito para lhe enfiar sua adaga
que continha o poder de se entorpecer e se entregar à cegueira
diante de um outro ser.
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Conhecimento, a quarta fada,
nadou por toda a sua carne
espalhando por todo o corpo
a capacidade de salvar a sua história
por meio de escritos, imagens e objetos.
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Política, a quinta fada,
mergulhou em seu sangue
e lhe inoculou a aptidão de se organizar socialmente
em sistemas, classes e disciplinas.
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Karma, a sexta fada
(que também respondia pelo nome de Neurose),
escorregou pelo couro cabeludo para lhe derramar
a capacidade de lutar contra a própria felicidade.
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Dor, a sétima e última fada,
beijou seus olhos
e lhe ofertou a capacidade de chorar.
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Feliz com seu feito, o criador agradeceu
e despediu-se das fadas.
Porém, temeroso de ser alcançado
pelos poderes concedidos àquela nova criatura,
o criador lançou àquele ser um feitiço:
Não teria jamais a certeza de coisa alguma.
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Feito isto, pôs-se a dormir, invisível.
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E aquele ser que acordava
e já não aceitava mais a sua pureza atômica,
passava seus dias a inventar, tal qual vício ou peste,
novas estruturas lingüísticas, estéticas, políticas e tecnológicas
para a dominação de seu povo e da natureza à sua volta.
Estas que, via de regra,
sempre geravam indefectíveis desastres
faziam-no passar todo o tempo buscando novas invenções
para consertar os próprios erros de outrora.
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E mesmo se multiplicando em ritmo absurdamente acelerado,
o ser inventou a solidão.
Sentia-se agora tão só
que inventou em si um novo talento,
o dom de inventar deuses.
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Da voz, compôs uma reza.
Das mãos, moldou o altar.
Da paixão, lançou-se ao culto.
Do conhecimento e da política, teceu a religião.
Da neurose, fez a culpa, a vergonha e o castigo.
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O ser derramou assim
sobre a terra azul e seca,
de alegria e melancolia,
a primeira e doída lágrima,
junto à primeira prece.
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Elas, que aí estão;
Elas, que não têm mais fim.
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(texto e desenho: Chuí)
11 comentários:
Fernando,
este poema é um baque em nossa mediocridade,
um arroubo de sensibilidade,
uma maravilha!
Indescritivelmenet belo!
Aurora.
Fernando Chui...apenas as palavra silêncio...comoção e agradecimento.
Luiza
O poema é belíssimo e, numa época como esta, ainda mais triste...
parabéns pelo blog; os poemas merecem ser logo publicados em livro. e aqueles contos também!
Pati
Seu mito reinventa um mito:
A complexidade, que conduz a evolução, gerou um nó existencial ao promover a consciência, que é conhecimento e culpa. Isso é o que eu penso ser a invenção da alma, e não seria o que os escritores da bíblia chamaram de pecado original?
"a complexidade(...) gerou um nó existencial ao promover a consciência."
disse tudo!
belíssimo! sem mais...
beijos!
É verdade, o pecado original deve ser o nascimento da alma...
putz, que loco, meu..
Vixe Maria! Arretado que só!
Oi Fernando,
De que planeta você veio?
Que delícia a sua poesia!
Me tocou profundamente.
Tu tens algo publicado?
Parabéns!
Anônimo,
Obrigado pelas palavras tão boas.
Publiquei apenas aqui meus escritos, mas quem sabe um dia...
Deixe depois seu nome e e-mail para retorno, tá?
Beijos,
Chuí
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