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domingo, abril 06, 2008

Rufus e a caveira Luciel


- Já é noite, meu caro - murmura Rufus, o velho fauno gordo, a Luciel, sua caveira e amiga imaginária - Não há mais como negar: a vida me foi ingrata.
- Mas a vida não existe fora de você, Rufus. Porque personificas teu próprio fracasso?
- Cala-te, Luciel, Não me importa tua filosofia barata! - exalta-se o fauno - sabes bem que, da vida, eu tive apenas a ingratidão!!!
- Não posso deixar de dizer que isto é uma baixeza da tua parte, caro amigo.
- Como ousas dizer isso, tu que não passas de uma caveira rachada de novilho?
- Sim, é exatamente o que sou, mas isto não te redime da verdade que trago agora à tua vista.
- Do que falas, ó ignóbil ossada?
- Percebe, Rufus, que enquanto o sentimento de gratidão revela humildade, o sentimento de ingratidão revela vaidade. Gratidão se refere a nós quando aprendemos a viver. E ingratidão se refere ao outro que nos deveria a vida.
- Não tens compaixão? Dizes que sou vaidoso no momento em que sofro?
- Sim, pois a gratidão faz o desejo da homenagem. E a ingratidão faz o rabisco da dívida.
Enquanto sentir gratidão é estar vivo, sentir ingratidão é morrer em pílulas.
- Tu me entornas a traição em forma de retórica, Luciel...Tu és quem não possui gratidão! Tu és quem deveria morrer!
- Amo-te, Rufus. E é disto que se trata a gratidão, uma carta de amor. Ingratidão, por outro lado, é uma via bancária. Enquanto sentir gratidão é uma forma de coragem, sentir a ingratidão é covardia.
- Tomas-me por covarde? Covarde? A mim, a quem tu deves a existência?
- Rufus, é exatamente o que quero dizer. Ninguém deve nada a ninguém. Pois é certo sentir-se grato. Mas não é errado não sentir-se.
Rufus esmaga o crânio do novilho com toda sua força até que seus pedaços de osso se esmigalham e escapam por entre seus dedos na forma de areia e minúsculas pedrinhas caindo e afundando sobre o pântano lodoso.
Antes de deixar o palco, Rufus se dirige ao público pagante nas primeiras fileiras e proclama, quase em um sussurro irônico:
- Quem diz a verdade deve estar disposto a pagar seu preço. E, verdade ou não, ela não passava de uma caveira.
.
.
(texto e desenho: Chuí)

7 comentários:

Anônimo disse...

ó Shakespeare!!!

Luiza Christov disse...

Fato é que tenho muito medo desse Rufus...o que será que ele tira lá de dentro de mim?

Anônimo disse...

A leitura do seu diálogo (um omelete de Hamlet?), me fez recordar
dolorosas conversas que tenho tido comigo mesmo. Claro que tenho vontade, ás
vezes, de esmagar o velho crãnio que abriga um cérebro que me faz lembrar
verdades que eu preferia esquecer. O problema é que o crãnio é o meu
próprio...

Anônimo disse...

muito bom! e o desenho!parabéns, chui

Germano Viana Xavier disse...

Grande Chuí, maravilhaso narrativa quase mitológica! Uma alegoria da desfaçatez humana, um diálogo filosófico e de estrutura simples, porém marcante.

Seu blog é um dos meus prediletos, meu caro. E teu talento é inegável...

Abraços sinceros!

Germano
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Anônimo disse...

q loco o bicho

Anônimo disse...

sensacional,
abs
Cris