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quinta-feira, outubro 05, 2006

O Lendário Cobra

Entre os meus onze e os meus catorze anos eu tinha um time de futebol na minha rua.
Cobra era seu nome. Do time, eu quero dizer.
Certa vez fizemos uma "vaquinha" para fazer um uniforme para o time. A quantia amealhada só foi suficiente para mandarmos gravar um pequeno C no lado esquerdo do peito de algumas camisetas brancas; apenas uma para cada um, é claro.
Eu era o caçula do grupo, gostava mesmo era de driblar e chutar para gol, porém só me deixavam jogar na defesa. Eu até que me achava hábil no ataque; no entanto, por ser o menorzinho ali tinha de obedecer aos "grandes". Ao menos tinha a sorte de termos um bom goleiro, o Cardoso, senão acabaria tendo que "catar no gol".
Eu costumava literalmente desenhar no papel as jogadas de gol e as estratégias de jogo após os treinos ou os poucos jogos "contra" que realizamos.
Jogávamos o dito futebol de salão quase todo sábado no parque Ibirapuera. Junto a mim, na retaguarda, jogava às vezes o Tuta; no meio-campo, o Paulo e meu irmão André; Daniel era uma espécie de pivô, corria todo o campo; e como centroavante, o Gustavo, vulgarmente chamado pelos amigos como Cabeção. Gustavo não tinha muito fôlego, por isso ficava plantado à frente da área adversária, quase todo o jogo, na famosa "banheira".
O Daniel gritava até ficar roxo com ele para que voltasse para ajudar na defesa e participar das jogadas estratégicas, mas Gustavo, o Cabeção, era um jogador com pouca disciplina. O gol desenhado na figura é dele, aliás, no nosso primeiro "contra", com um time de outro bairro chamado CEGE, e denota bem o seu usual posicionamento em campo.
Lembro-me bem de um mito que havia entre nós, o invencível time do Humaitá.
O Humaitá era o time campeão da região onde morávamos. Toda vez que na rua se falava nesse time criava-se no ar um certo sentimento de temor e eu me sentia um mero soldado troiano ouvindo falar das façanhas imortais de Aquiles. O Humaitá era um time de craques. O Humaitá não perdia nunca.
Se por algum momento nos gabávamos de o Cobra ser um time bom de bola, por termos jogado muito bem em algum daqueles sábados ou por puro e lúdico regozijo coletivo, aquele nome servia para nos colocarmos em nosso devido lugar: o Humaitá.
Um dia, o Daniel apareceu em casa contando que estava "agilizando" um "contra" com o time do Humaitá. Sofri um calafrio de medo e excitação. Será que eles realmente topariam? Será que o pessoal ia me deixar jogar "na Linha"? Seria um massacre?
Por mais humilhante que pudesse ser o resultado, termos um jogo marcado contra o Humaitá era como ser o time de reserva do Casaquistão e receber o convite para um amistoso com a seleção brasileira. Pra mim, jogar com Aquiles não era tarefa da estratégia ou da habilidade, mas da fé.
Sempre que alguém da turma fazia gozação sobre os chutes pra fora do cabeção, os frangos do Cardoso ou a moleza do Fê(eu, no caso), tínhamos um discurso pronto: “jogo é jogo e treino é treino, a gente é profissional”. Havia sempre um sopro de esperança de vitória, mesmo contra o monumental Humaitá.
O jogo com o poderoso Humaitá nunca ocorreu e o nosso time se dispersou nos idos de 1989. Com os anos, realizamos algumas partidas esporádicas. A última delas eu não pude me esquecer, foi em um carnaval em Laguna, praia de Florianópolis. Eu já era maior, já jogava no ataque e fazia gols. Para permanecermos em campo eu precisava converter o último chute da disputa de pênaltis. Voltamos mais cedo para casa, pois eu chutei muitíssimo pra fora, é claro. A bem da verdade, ninguém se importou muito, o pessoal queria mais era voltar pra casa para fazer a tradicional concentração alcóolica para a noite de carnaval. O Cobra já não estava mais entre nós.
Um time de futebol da infância é a prova viva daquela idéia freqüentemente abordada pela modernidade de que o todo não é apenas a soma das suas partes. O time era o símbolo de um certo momento da vida. Mas unindo novamente as suas partes em outro instante , não se concretizou.
Todavia, parece que as coisas fortes da vida descobrem estranhas maneiras de reaparecer. Quando eu participei, anos atrás, de um festival de música promovido pela rede Globo, o microfone falhou e eu cantei três estrofes sem som algum; segui a apresentação e, felizmente, acabei classificado. Contudo, o mais curioso foi que, na entrevista em que a atriz Maria Paula fez comigo, quando ela me perguntou como eu havia mantido o sangue frio para não parar o show, eu lhe disse, como que porta-voz do velho time: "você sabe, jogo é jogo e treino é treino..."
Parei por um instante para não acabar me comprometendo com o resto da sentença.
O prêmio do festival acabou não vindo, assim como o jogo com o Humaitá. Tive muitos outros Humaitás ao longo dos anos. Ainda tenho alguns, mas hoje em dia não confesso tão facilmente quais são.
Mas Cobra, só houve um.
Entre os meus onze e os meus catorze anos eu tinha um time de futebol na minha rua.
Cobra era seu nome. Do time, eu quero dizer.
A rua se chamava Noel Torezin, onde ainda mora minha mãe e a mãe do Cabeção, que hoje tornou-se delegado no interior de São Paulo.

(imagem: desenho de Fernando Chuí de 1987)

5 comentários:

Rafaela Figueiredo disse...

Rindo aos montes... rsrs a-do-rei!

beijos!

Anônimo disse...

Muito legal!!!!! Não lembrava de muita coisa...q memória!

Anônimo disse...

Delícia, o Huimatá não tinha um escritor no time como tu, para imortalizar o esquadrão. O Cobras ganhou com folga na literatura. abraços

Fernando Chuí disse...

Fabro, que bom suas falas e ares por aqui! Este blog veio de nossa conversa sobre o Lendário Cobra, afinal...

Anônimo disse...

Lindo o ensaio sobre o time "dos cobras". Lembro de um dia em que meu carro, velho e pequeno, carregou todo o time para um racha - para as bandas do Jabaquara, creio. Precisava ver a cara de incrédulo dos passantes, quando paramos para um guaraná numa padaria, que não acabava de sair moleque daquele carrinho...
Bjos do Pá