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quarta-feira, dezembro 06, 2006

fato quase


(Há cerca de dois anos, eu escrevi oito histórias que, juntas, formavam Contos do Mal, meu livro não publicado de contos . O mal não habita nenhum outro espaço que não o de nossas almas; é a entidade que nos proporciona a visão do bem. O conto que segue é o mais curto e o último desta série - uma visão sobre a fragilidade da vida apolítica.)
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Fato quase

Ela não sabia nadar, mas tentava, chacoalhava seus braços e se debatia em vão; vinha de muito longe, passeara por belos campos, presenciara a beleza dos céus e suas cores misturadas e do esplendor das matas impronunciáveis.
Era uma ironia que agora se encontrasse sob tamanha dificuldade; já havia passado por momentos muito mais complicados e perigosos e, por fim, escapado de tudo ilesa; todavia ali estava ela, encarcerada pelas águas, condenada pela sua própria estupidez. Como aconteceu, não vem ao caso, para que se buscar um responsável por um erro quando este mesmo se agarra às suas últimas forças em uma luta patética pela sobrevivência? O fato era que ela não resistira, como sempre, às tentações do desconhecido; para ela quase sempre fora impossível olhar o abismo sem se atirar nele.
Talvez fosse desprovida de medo - ou teria pavor? – e naquele instante fosse provavelmente o mero instinto de sobrevivência; não tinha, que se diga, algo que pudesse substancialmente ser chamada de um medo, contudo era incrível como o medo por vezes pode ser tão incrivelmente próximo a se confundir com o puro reflexo de defesa.
A sua vista estava cada vez mais turva, seu corpo boiava na imensidão aquática enquanto mantinha-se lutando pela vida ou quase isso. Embora o drama de sua luta pela sobrevivência seja o enfoque do que se escreve aqui, tudo ali não passava, na realidade, de um pequeno ou quase incômodo. Muitas vezes, a morte ou a guerra de outrem resulta, na melhor das hipóteses, em uma pequena coceira no canto da nuca alheia. Assim era, a rigor, a história de sua vida – não somente a dela, mas de muitos outros como ela – tratava-se de um afogamento, bem podia ser um atropelamento, um pisoteamento, um bombardeio, uma explosão, um enforcamento, um espancamento, um envenenamento.
Desprovida dos instrumentos necessários para a reflexividade, ela se fazia sempre banal e sua morte poderia ser até mesmo desejada ou meramente desprezível. Não porque era pouco visível - pois o era afinal - mas porque não havia em sua classe alguém que tivesse condições de erguer a voz contra tamanha brutalidade, o ser que se vê sem um grupo que o represente possui a maior de todas as solidões.
As águas tornavam-se cada vez mais agitadas, ondas ferozes lhe arrastavam e brincavam com seu corpo frágil como cachorrinhos brincam com brinquedos de borracha abandonados pelas crianças. Nada novo, aliás, em sua classe. Não há argumentos diante de um corpo a se encher de água, a braços que se desmantelam, à imagem de uma vida desesperada que grita os últimos movimentos para se manter, não há nada mais vivo do que um corpo lutando pra não ir embora, pois a vida nesta hora se revela no corpo e ainda mais no olhar daqueles que produzem seu cinema psicológico. Mas não havia olhar.
As ondas se formavam a partir da peça metálica que se movimentava naquela lagoa, entrava e saía levando e derramando pequenas partes da água daquele reservatório. Ela ia sendo carregada por aquelas marés a cada gesto brusco do instrumento, perdia suas forças; havia pouco a fazer, mas não desistia, pois que nem sabia o que era isso. A água estava quente, amarela e translúcida e boiavam ao longo daquela superfície líquida várias folhas verdes, vermelhas e marrons, além de estranhos objetos amolecidos a se esfacelar naquele meio. A sofreguidão com que começava a se movimentar o instrumento metálico fez com que as águas começassem a empurrar o corpo já quase inválido dela para as margens do lago poluído.
Uma pequena esfera verde acertou sua cabeça e após alguns segundos o empuxo das águas tragou-a para o fundo para depois arrastá-la para uma das bordas da estranha lagoa ou quase isso.
Seu equívoco havia sido evidente, separar-se de seu grupo. Deveria haver uma lei que protegesse os irreflexivos, que os proibisse de andar sozinhos – andar em coletivo é a única forma de sobrevivência dos seres desprovidos da qualidade reflexiva; ou ainda, a melhor forma de sobrevivência é a reflexividade, é a marca dos tempos modernos, afinal, pois a reflexão deixa sempre vestígios que servem para a real conexão com o grupo, livrar-se de ser incômodo é infinitamente mais complexo do que livrar-se de um incômodo, pensaria ela, se pensasse.
Por um instante pareceu que poderia escapar, mexeu, contumaz, as pernas e buscou se retirar das águas escorregando pela superfície lisa da margem onde fora levada, todavia a peça de metal voltou a remexer as águas e, quase que no mesmo momento, uma violenta onda caiu-lhe por sobre o corpo envolvendo-a e engolindo-a novamente para junto das coisas flutuantes.
De súbito, o instrumento cessou seu entra-e-sai e algo fatal aconteceu: ela agora era observada. Como se pudesse ter percebido, ela reunia todas as últimas forças e chacoalhava seus membros rapidamente; era desespero ou puro reflexo, mas era quase fuga. A enorme peça de metal agora vinha ao seu encontro, buscava seu corpo por entre as tantas substâncias que ali se misturavam. A primeira investida fez com que partes de água transbordassem dali, salvou-se por trás das esferas verdes. A segunda vez foi contundente, arrancou-lhe das águas num só gesto derradeiro; na verdade, partiu-lhe o corpo, deixando esfaceladas as partes que permaneceram na água.
O mundo poupa tolos, desvalidos, inocentes, idiotas. Mas não há perdão jamais para os seres que andam a sós e sem pensamento – e, sobretudo, aqueles sem representação de classes.
E por vezes o que restará do fato, ou do quase fato, e como as únicas provas de vôo, serão asas molhadas de um quase protagonista se desfazendo sobre a sopa.

(imagem:"Fly"colagem de Chuí)

5 comentários:

Anônimo disse...

Caro Chuí,

Adorei o conto. Sempre digo que estamos vivendo o caos no mundo inteiro por pura irreflexão e com isso, ficamos nos debatendo á esmo. Gostei muito. Beijo

Yone

Anônimo disse...

Querido Chuí,

É realmente um embate transmitido em palavras. E de palavras. A reflexividade é interesting, no mínimo, bem mínimo. Ainda bem que temos representação de classes e usamos a consciência crítica, ou não, ou sim, talvez?
Escuta, por que não mandas um texto teu para o site da Geração Editorial, naquele espaço (veja nos colunistas) intitulado Todos Nós. Tente, escreva mais sempre.
E a ilustração é ímpar, dei de imaginar.
Tem texto meu na coluna da Geração também. Assim como no banga.zip.net
Aguardo tuas visitas. O tema da semana é: Palavra.
beijocas,
Palena

Anônimo disse...

Fernando, parabéns por seu conto. Vc é, além de grande músico, exímio desenhador, escritor pronto. Achei perturbador. Boa literatura. Manda para uma editora logo. Parabéns.

Fernando Chuí disse...

Anônimo, obrigado, vamos tentar...beijos!

Anônimo disse...

Chuí!
Tô com o Anônimo, e não abro! "Manda para uma editora logo"!!!