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quinta-feira, dezembro 07, 2006

Sobre a minha timidez e o equilíbrio cósmico

Guardo no fundo do meu planeta uma raiz de sombras, uma voz, chamada timidez.
Há dias em que ela está mais à mostra, grave e acomodada feito as pernas do carvalho; noutros, é quase um sussurro imperceptível, um conjunto de finas veias a se misturarem na terra úmida. Ela muda o tom, a cor e a forma de acordo com as condições, afinal as sombras não sobrevivem sós, elas dependem da qualidade da luz alheia. Por vezes, ela se parece com um pudor vermelho; por outras, com uma antipatia cinza. Mas é tudo ilusão, pois é sempre a mesma criança azulada com medo de sair do útero, o mesmo velho marrom com vontade de retornar para lá. A mesma voz, sempre ali, a raiz inexata na base da minha fundação.
Em contrapartida, eu tenho uma outra voz, esta que canta. Pra piorar, exibo-me assim para platéias, tantas quantas quiserem me ver. Pessoas constantemente costumam se dizer espantadas com a minha face dramática no palco, bradando despudorada, em contradição com a minha presença cotidiana, quase sempre bastante sóbria e econômica, quase avarenta.
Em um mundo que padece da ditadura da histeria, sinto a timidez como um mecanismo psíquico que funciona sob uma lógica de equilíbrio cósmico. É como quando, em grupo de pessoas muito sintonizadas, uma delas precisa se retirar e todos sentem o desconforto, passam por momentos de re-harmonização. Eu sempre percebi que há um momento claro de desequilíbrio da ordem universal antes estabelecida. Regida por esta ordem, minha freqüência é constantemente alterada. Em ambientes onde há pessoas falando muito, tendo a calar-me. Faço isto como que para suprir a função de equilibrador da ordem social, para preencher o espaço dado com o vazio de palavras. Viro de costas pra acompanhar o movimento da sombra.
Como em uma orquestra ou em uma Big Band, onde os instrumentos por vezes devem desaparecer para dar lugar às outras vozes que virão fazer seu solo. Nos ambientes agitados, falo pouco, alguns poucos contracantos de oboé em resposta aos temas das melodias principais. Com pessoas quietas, torno-me expansivo, faço os violinos, os improvisos do saxofone. Com os velhos amigos, Free Jazz.
Minha timidez é dialética e musical.
Ao olhar para o mundo repleto de informações, tenho a sensação imediata de ser um instrumento invisível. Logo percebo que não é verdade, que há pessoas que sempre acabam notando minhas tonalidades. A consciência de um mundo interior tão cheio de eventos me traz para esta impressão de que, mesmo quando me olham, não me vêem. As pessoas mais sensíveis podem constatar que há algo por trás, mas não conseguem definir em palavras. É uma estranha autocrítica.
Quando estou assim, somente a luz me atravessa a consciência. É como eu gosto de ser visto. De tão lúcido, translúcido.
Na verdade, tento sempre cegar a verdade da inveja que possuo, assim como todo tímido, dos extrovertidos, dos evidentes, dos histéricos com seus holofotes de arco-íris. Invejo tudo o que não faz parte da minha transparência cósmica.
Deve ser por isso que eu canto. Para romper o silêncio do peito, a outra voz. Para arrancar do solo esta raiz, tal qual grito de mandrágora. Para confundir o tecido das sombras com a matéria dos astros.
De tão espacialmente tímido, acho que aprendi a me esconder na luz.

(imagem: desenho de Chuí)

7 comentários:

Anônimo disse...

Fer, é um impressionante auto-retrato o que vc fez neste texto. Além de tudo vc salvou a verdade da timidez, seu lado sutil que se deixa de lado em tempos de culto histérico a tudo o que se mostra e quer ser visto.
Do lado de cá, do "extrovertido" que eu pareço, apenas posso dizer, tb tenho inveja dos tímidos.Jung, todavia, falava que isso era dialético: o tímido é que é o verdadeiro extrovertido, o extrovertido o verdadeiro tímido. Será que tem sentido?

Anônimo disse...

Vocë alem de excelente musico, e tambem poeta. Parabens.

Yone

Fernando Chuí disse...

Obrigadão, Yone querida, sou feliz de tê-la lendo minhas coisas aqui. Mil beijos!

Anônimo disse...

É... músico-poeta-amigo-Chuí!
Há uns dias fico off e já sentia falta disso aqui, mas estou de volta! =D
"De tão lúcido, translúcido." Que isso, heim?! Arrasou! Grande trocadilho entre a intensidade de 'tão' e a semântica de 'trans' (= para além de)!
Translúcido, vc transluz e reluz. Tu és artista, és estrela! E essa luz em que te escondes é o espelho dos nossos olhos que te revela!

beijos!

Anônimo disse...

meu irmão, eu tentarei sempre ser sensível para defender tua timidez. prometo.
bjs
fabro

Anônimo disse...

Fernando
Na colagem "Fly", ( desenhos seus com a Márcia?) você obteve uma expressividade que leva a reflexão .Lindo! Mais um caminho a percorrer nessa linguagem que poderá levar a diversos horizontes.Além da sua escrita , "Fato quase" e "Sobre a minha timidez e o equilíbrio cósmico " que nos revela as suas qualidades como escritor.
Um beijo por essas expressões mais profundas da alma.
Lourdes
PS-Você mencionou o seu livro não publicado "Contos do Mal", o que me levou a buscar na estante "A Transparência do Mal",do Jean Baudrillard, que li em 1998 ,onde êle diz:
Já que o mundo se encaminha para um delirante estado de coisas,devemos nos encaminhar para um ponto de vista delirante.
Mais vale perecer pelos extremos do que pelas extremidades".

Anônimo disse...

Vc é perfeito na sua timidez. Vc canta pq tem uma voz linda e compoe lindas musicas e não para romper timidez...ora ora a sua timides é um charme e no palco ela fica ainda mais evidente.