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sábado, setembro 30, 2006

Avareza - Domingo Branco sem Voto Nulo ou Domingo Nulo sem Voto em Branco


Em dia de eleição em que a cidade se enfeia, abrindo-se em um céu branco de desesperança, para justificar a feiúra dos próximos anos de governo, eu reflito sobre a avareza(eleição esta em que não é possível sequer o velho voto de protesto, pois o sistema vigente faz com que o voto anulado acabe por legitimar ainda mais o candidato vencedor; por diminuir o número de votos válidos, simplesmente aumenta a porcentagem daquele que obtiver mais votos).
A avareza é o contrário da generosidade, o que não é o mesmo que egoísmo. Para além da concepção que contempla o termo como algo relacionado ao desejo imoderado pelo acúmulo de riquezas materiais, penso sobretudo na avareza dos afetos.
O mundo moderno nos ensina a não expressar nossos sentimentos. Não vale a pena, diria este mundo, já que, na contagem final, não se ganha mais pontos com isso.
Aprendemos a não expressar indignação já que não fará mesmo diferença; aprendemos a não ter ética, pois ninguém tem e, afinal, não vamos mesmo ser responsabilizados por nada; aprendemos a não votar em quem desejamos, pois não há chances de vitória, e é só isso que importa no mundo dos vencedores; aprendemos a não demonstrar amor porque sabemos bem o que a reação ou não reação do outro pode nos causar em termos de danos psicológicos; aprendemos a não demonstrar afeto porque isso é arma das pessoas superficiais, dos cafonas, dos falsos. Aprendemos, no lugar de demonstrarmos sentimentos, a usar máscaras de sentimentos, artefatos de alegria e tristeza que cobrem e protegem nosso rosto como escudos, mas que se amoldam a ele, redefinindo-o.
Desta ação esculpem-se três seres que irremediavelmente vêm nos habitar a alma, em maior ou menor grau: os mortos, os histéricos e os cínicos. Ele não habitam apenas nossa vizinhança, habitam efetivamente nossa cultura, nosso afeto.
O Contardo Caligaris disse um dia que o solitário é, na verdade, um avarento, pois é o tipo que não é capaz de ser generoso e se queixa que o mundo não lhe dá nada. Com essa afirmação, lembrei-me de dois shows sensacionais que assisti por esses dias. Paulinho da Viola e seu lado B, na sexta, e a homenagem a Itamar Assunção, no sábado.
Bem à minha frente o lorde do samba cantava ao final, para não desapontar um público sedento por seus "Hits", os versos clássicos "Solidão é lava/que cobre tudo/Amargura em minha boca/sorri seus dentes de chumbo". Uma pessoa pedia sem cessar a música "Foi um Rio que Passou em Minha Vida", sem ser atendido. A vontade do músico de fazer um outro tipo de show não parecia importante ao espectador, somente a sua própria histeria.
No final do lindo show em homenagem ao Itamar de ontem, artistas como Ná Ozzetti e Zélia Duncan e toda a turma que o acompanhava e o admirava sentou-se sobre o palco para assistir no telão do SESC ao próprio Itamar tocando uma linda canção em que dizia que "devia ser proibida uma saudade tão má de uma pessoa tão boa". Após a homenagem, as pessoas não se satisfizeram e seguiram batendo palmas e pedindo bis, sem compreender realmente o sagrado daquela exibição. Não podiam sair dali com a imagem bela do compositor, queriam mais e mais diversão e prazer, sem perceber que aquele show precisava ser assimilado como uma reza, algo absolutamente declarado quando o genial Arrigo Barnabé momentos antes proclamou que iria naquela hora dizer outra coisa, mas que tinha resolvido rezar. Mas o público queria apoteose sem fim.
Não respeitar a morte é uma forma de morte. Não compreender o valor do luto é não compreender o sentido da luta. Deixar de olhar para o outro lado é o primeiro passo para não ser olhado e partir para o uso das máscaras. Esta pseudo-paralisia em que vivemos nos torna cinica e histericamente avarentos.
Fiquei impressionado, nos dois shows, com a quantidade grande de pessoas que percebi sozinhas nos dois eventos.
O mundo-fábrica-de-solidões se impõe neste domingo de céu branco em estado de purgatório para obrigar-nos a escolher um entre os muitos nomes diferentes para o mesmo diabo; crescendo em proporções gigantemente desordenadas, ela nos reinventa marginais, desajustados e solitários. Nos tira o direito ao voto de protesto.
Domingo branco sem voto nulo. Domingo nulo sem voto em branco.
Das crias desta máquina de avarezas, aparece dentro de nós aquele cara legal, que não quer encrenca e que imagina que o melhor é desviar da dor pra não perder de vista o amor.
Que equívoco.

(imagem: desenho de Fernando Chuí)

4 comentários:

Mastabi disse...

Anule as eleições.
Há política além do voto.

Fernando Chuí disse...

Pois é o que nos resta, Milton.

Anônimo disse...

Chuí, meu caro, este é daqueles textos que mereciam estar em várias partes. Ao alcance das vistas, leituras, corações e reflexões. Desvendando o presente e o passado, reinventando o presente-futuro. De mãos dadas, sim. Partilho de tuas idéias e indagações 'sur la vida'.
E, também, como lembrou um amigo dia desses, a citar alguém que não lembro, ou enlouquecemos ou fazemos poesia!
beijo da amiga Palena

Anônimo disse...

Obrigado por Blog intiresny