Visitantes

domingo, novembro 12, 2006

Canção sobre um Diálogo V - Manifesto da Canção de Ninguém


Caro D.

Perdoe a minha demora a responder. Isto se deve ao fato de as suas questões exigirem tempo para reflexão e, com os shows e tudo mais, só pude fazer isto agora. Bom, vamos à lida.
Acho importante ressaltar que, quando se fala da morte da canção, trata-se da morte de uma certa forma de canção, que se ausenta cada vez mais do grande mercado. Faz sentido, pois a música popular surge, assim como o cinema e outras artes modernas, vinculada ao consumo de massas.
Desta maneira, é preciso se definir ou se redefinir esta tal canção que esmorece, para que ninguém se afaste da claridade da discussão.
(Ligue o rádio ou a TV, permanece vivíssima a canção-chichê)
Conceitualmente, a canção é aquela breve composição para canto acompanhado de instrumento, ou até desacompanhado. Esta modalidade musical vem desde a remota Antigüidade, atravessando toda história da música, do canto Barroco acompanhado do Alaúde, passando pelos românticos e impressionistas até aportar no século XX, na fusão cultural que você falou bem em seu texto. Sob o ponto de vista formal poderíamos pensá-la como uma pequena peça onde se apresentam, em geral, uma forma A sucedida (ou não) de uma forma B, preparação para o refrão que viria a seguir como a forma C. Outra maneira de se pensar a canção é um certo tipo de canção, aquela mais lenta e de harmonia complexa, como se vê na MPB em músicas como Luíza de Tom ou Beatriz de Chico e Edu Lobo.
Estas definições dizem respeito à semântica desta palavra e não encerram a questão, mas servem para deixar claro que não é sobre qualquer forma de canção que debatemos aqui, que não é sob tais prismas que buscamos a reflexão sobre o gênero.
Por isso, penso que temos de definir de que tipo de canção tratará este diálogo; ou melhor, sob que enfoque lidaremos com estas canções. Ou mesmo se deveríamos tratar aqui da canção.
(Pois que, às vezes, precisamos fugir para outro hemisfério para compreender o nosso próprio mistério)
Tratamos de composições que trazem o quê? A crítica de seu tempo, de sua época, de sua própria estética? Um pulso que canta para seu povo sob uma linguagem que não ignora seus antepassados, em uma metalinguagem que traz em si o germe de sua auto-destruição.
As tais “baixa” e “alta” culturas podem retornar para suas moradas acadêmicas e dar lugar a um mesmo questionamento, sendo que a crise da chamada pós-modernidade não atinge apenas a música popular; a dita música erudita já não dita nada; a contemporaneidade vive em crise, não sabe pra onde ir, nem constitui mercado, mal encontra espaço nas academias.
Ou seja, talvez a questão seja bem maior do que a de nosso umbigos cancionistas, buscando guarida afetiva na formação de um novo público.
Eu lhe devolvo a questão: o que faz da canção-idéia algo tão indispensável?
Você me diz que precisamos de autores que se encarreguem da missão cancionista, porém, continuo fiel à idéia de que não precisamos dos novos nomes, mas das novas estéticas.
Nosso tempo é dependente químico das autorias, é fato; Ele precisa de nomes definidos, como uma revolução que precisa de heróis. Não obstante, é somente para consumo das massas.
A rigor, o que acontece de mais importante não é a obra de um autor específico, mas a obra de um grupo que representa e forja uma época e um estilo(é verdade que algumas vezes a obra de um estilo se confunde ou se resume à obra de um só autor). Com isto, respondo aqui à questão da Márcia sobre se a morte da autoria não seria o primeiro passo no sentido da morte da obra. Penso de outra forma: a obra poderia ser, num mundo politicamente mais evoluído, o legado de um estilo ou o posicionamento de um grupo diante da ordem estabelecida.
Assim, como compositor destas anacrônicas(aliás, como tudo hoje em dia) formas musicais denominadas canções ainda busco o manifesto da canção de ninguém.
Após o lançamento do Nunca Vi Mandacaru, refleti um pouco sobre a função social da música. Senti como uma apresentação de canções pode ser um momento bonito de comunhão afetiva, estética e até política. Não senti que havia ali um artista a ser legitimado, mas a possibilidade de ser porta-voz de um sentimento coletivo. Como se as canções não fossem minhas, fossem de ninguém.
Pois a canção de ninguém serve para cada uma de nossas vozes.
Pois a canção de ninguém não é obra de Deus.
E, com um tinteiro de lágrimas, todos podem assinar a canção de ninguém.

Abraços dissonantes,
Chuí

(imagem: desenho de Chuí)

2 comentários:

Anônimo disse...

Fernando, entendo a preocupação com a autoria levantada pelo Danilo. Aquele autor moderníssimo que conhecemos bem, Theodor Adorno, falava que a solução estética, ética e política no mundo era o fomento "sujeito", ou seja, alguém que tanto sabe de si quanto ousa agir a partir de sua própria liberdade responsável. Bom, estamos há tanto em crise ou além da modernidade (não sei se adianta tb definir um tal locus hoje em dia em que barbárie e civilização ainda dão a tônica de nossas relações pessoais e políticas)e o sujeito precisa ser questionado. Mas ainda acho que seria um lugar a se chegar para construir o "coletivo". Uma massa de sujeitos é, na verdade, uma multidão de pessoas que podem optar pela união.
Gosto muito do seu Ninguém. Parece com o João Ninguém, personagem pelo qual tenho fascínio, mas 'so posso saber que sou ninguém e que isso vale mais numa coletividade solidária e ética, se antes descobri que faço parte. Vc tem voz. As pessoas tem que aprender a criar voz. Talvez seja esta a grande falha da canção. No excesso da democracia eu, "ninguém", em meio à uma massa que ajudo a construir como ignorante, empresto uma voz de outrem, deixo que outro fale por mim. ''E esta a regra, aliás, aspecto de toda a arte atual. Emprestamos, como espectadores, olhos, ouvidos, sensibilidade em geral, pois a cultura industrializada raramente nos eferece algo que escape da submissão à anestesia. A canção é, meus queridos, como objeto e mercadoria, algo a ser profundamente questionado. Ninguém no mundo da canção diz: cante vc mesmo, invente sua voz, crie sua música. Dizem sempre: podem cantar o que eu já disse ser possível. Ser porta-voz? Ok, desde que eu me destitua deste lugar, que saiba de sua caducidade. Por isso, concordo, ser ninguém só depois que, ao emprestar a voz, libertei vozes emudecidas.

Fernando Chuí disse...

Marcia, é verdade. A posição do Danilo, assim como a de Adorno, é muito importante. Não falo contra isto, mas por trás disto. A ação do sujeito é fundamental, pois fique claro que o ninguém a quem eu me refiro, é o anti-ninguém.
O sujeito pode e deve agir.
E penso que poderia ser não em nome de sua obra pessoal. Mas pela estética, pela política, pela ética.