Hoje, observando a esmo videos divulgados no Youtube de cantores internacionais como o popstar britânico Robbie Williams entre outros tantos, percebi que aquelas cenas das estrelas pop, em seus clichês de movimentação e trato com câmera e público, me traziam certa antipatia. Ora em videoclipes bem produzidos, ora em estádios lotados de massas humanas cantando em coro os refrões e agitando seus braços, constatei que eu tinha muito pouca afinidade com aquela estética. Normalmente, eu apenas fecharia aquelas “janelas” e voltaria ao meu assunto do dia. Entretanto, talvez temendo encarnar aquela postura mau-humorada de “velho que rejeita o novo”, tive um desejo de descobrir o que me afastava daquelas imagens.
Percebi que o que me incomodava, ao contrário do motivo que eu outrora atribuiria a isto, não era o enorme coro representando aquilo que Freud chamou de “sentimento oceânico”, que dizia respeito à emoção coletiva e alienante dos cultos religiosos, sendo que cada vez mais eu acredito no potencial da música e da arte como criação de ritos, celebrações, encontros com pessoas e com algo como a nossa “alma universal” - pois quanto mais nos aproximamos de nós, chegamos invariavelmente mais perto do universal; também não era nada diretamente crítico à idéia da indústria cultural, à produção sistemática de produtos artísticos para uma massa ingênua. Nada disso. A produção dentro do campo da indústria é também um campo de conflito estético e criação de novas culturas.
O que me deixava um tanto indisposto com relação àquela cênica era a displicência para com o canto e, mais especificamente, para com a voz. Não que houvesse desafinações a toda prova, muito pelo contrário, tratava-se sempre de cantores afinados, bem impostados e adequados a seu contexto.
Refleti que o efeito que ali se dava surgia de uma imagem estudada para o contexto de grandes shows em lugares públicos ou para um contexto televisivo. Um canto incorporado à construção dos eventos apenas como mais um dos elementos cênicos e, dessa forma, se apresentava esvaziado de sua poética própria.
Pensei na voz humana e no seu potencial específico nos campos visuais, musicais e literários. Sem a voz humana, não haveria música. Os instrumentos imitam o canto humano e os sons da natureza: a voz. A voz é som, texto e construção de imagens. Sem a voz, não haveria o verbo e, conseqüentemente, a literatura, a poesia, a canção. A voz é o nome que se dá, em literatura, à força poética do escritor.
A voz forja o discurso e a pintura. Porém, na cena popstar o discurso deseja forjar a voz. Nada contra o espetáculo; que contradição seria isto vindo de mim, que adoro shows – fazê-los ou assistir a eles.
Uma das quatro bases do movimento Hip Hop é o MC, o rapper. MC é Mestre de Cerimônias. Ele possui esta legenda por ter surgido como animador de eventos que aliavam música, pintura nos muros(grafite) e dança de rua nas comunidades excluídas de Nova Yorque formadas por negros e latinos. Naquele contexto, a voz potencializou-se musicalmente, exacerbando aquilo que já havia no canto falado das canções “folk”, e abrindo portas que modificariam profundamente as estruturas da música popular mundial. Era a voz em um contexto de ritual coletivo sim, mas uma voz ativa inventando possibilidades.
No rock, costuma-se chamar os músicos que, ao tocar, fazem expressões faciais ou corporais exageradas de “posers”, pessoas que posam demais no palco. Não obstante, é mais do que evidente que a cênica encontre seu espaço quando é oriunda de uma voz. O corpo é voz em Elvis, em Hendrix, em Björk, em Maria Bethânia. Mas não em Robbie Williams.
É também possível que grandes artistas levados ao contexto pop televisivo diluam - se mal projetados para esta tela - muito da força expressiva de sua música, de sua poesia, de sua pintura – sua voz. A voz em cada contexto deve ser adequada a ele, mas não soterrada.
Porque a imagem se constrói por meio da voz e não em detrimento dela, como se ela fosse apenas um “teaser”. É provável que, sem esses contextos, o mesmo artista viesse a nos revelar melhor as suas cores – ou, se não, quiçá mudasse de sua área de atuação.
A pose dos popstars elevada a estética é o esvaziamento da voz - a invenção de uma fala oca. Enquanto a voz é o preenchimento e a invenção da alma. Alheia ou própria de um corpo que se olha.
.(texto e ilustração de Chuí)
8 comentários:
Compartilho de sua antipatia.
E invejo-o por isso: "tive um desejo de descobrir o que me afastava daquelas imagens." Ou talvez, não. Antipatizo mesmo! E não procuro ir além ou entender mais algumas coisas. Aliás, estou com um profundo desejo de tornar-me uma alienada. (Triste?)
"Quanto mais nos aproximamos de nós, chegamos invariavelmente mais perto do universal." - Que medo disso!
"A voz é o nome que se dá, em literatura, à força poética do escritor." - Não como espetáculo; mas ando sem essa. Com pensamentos demais, mas sem verbo (medo tb!).
Das muitas que há em mim, hoje, há um conflito tamanho entre Rafa e ela. E nem sei pq estou aqui lhe falando.
Bem bom o texto. Queria nem ter lido (:evitar pensar), mas... enfim.
Estou um quadro; um pé de cama; um piso; um sapato velho... qualquer coisa q não exija ação ou sei lá.
beijos
Fernando Chui, a palavra sai de tua alma com força que morde seja em poesia ou em prova...uau, quero dizer prosa...ou melhor, prova...ou prosa e prova.
Por favor, seja aprovado. Tudo o que quero com relação ao teus textos é...pegar carona...ser oportunista...é o privilégio da cumplicidade. Serei capaz?
Luiza
Chuí, já eu não gosto de toda a parafernália, em especial deste RW. Mas o sentimento oceânico eu curto, afinal sou beatlemaníaco. Acho que o som é ruim mesmo, e a voz é um ponto a mais. Não nos acrescenta nada, fora todo este esforço de compreender porque um é bom e o outro é muito chato. Tudo parece milimetrado, até as piscadas para a platéia: é muito business e nadica de alma.
Grande Hamertz,
A voz a que me refiro não é somente a voz literal, mas a voz que é alegoria da força poética.
E acho que você vai ser beatlemaníaco até quando odiar ir a grandes shows, por isso não acho que sua ligação seja com o tal sentimento oceânico, mas com a expressão universal dos Beatles...
Ou não?
Fantástico Chuí. Dessa forma penso que as pessoas falam ou cantam para elas mesmas sem se preocuparem com quem as ouve.
Beijo
Tenho precisamente a mesma percepção que você descreve, relativamente aos megashows.
Dizendo bem simplesmente, o megashow me dá a sensação de novela, comparativamente ao teatro.
Em um caso se compromete a voz, no outro o drama.
Mas acho que esse meu comentário "rasteiro" não faz jus ao refinamento do seu belo texto.
Eu não expklicaria tão bem o vazio desses megashows como vc fez. Muito bom.
Wilson
maravilhoso o seu texto,querido Fernando!A profundidade da sua reflexão possibilita uma amplitude que vai além da pose dos popstars e dos megashows.Se estende aos cantores e cantoras que também gravam frequentemente "jingles" e que num contexto de gravação de discos ou de shows ,apresentam no canto e na voz todos os vícios adquiridos no jingles:a voz elevada a técnica,vazia,sem alma.
beijo
Lourdes
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