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quarta-feira, novembro 22, 2006

Diálogo sobre o Desenho III


Fer,

O aspecto primeiro enunciado na sua carta é o que mais me chamou a atenção diante da sua vasta teoria que eu gostaria mesmo de poder discutir. Infelizmente não será no curto espaço desta carta, mas nas seguintes quando teremos retomado muito do que ali ficou implícito, para que se torne explícito.
Talvez seja o efeito de minha leitura de Vilém Flusser que escreveu vários textos sobre desenho, estou interessadíssima na questão semântica e mesmo etimológica que envolve o desenho. Vc menciona um dado essencial: eu-desenho, como se o desenho carregasse o eu de cada um e o definisse numa folha de papel, quando desenho, desenho-um-desenho e isso faz nascer a obra, mas ao mesmo tempo, quando sou eu-que-desenho sou eu que nasço da coisa que criei. Para usar um “lacanês” válido: me torno meu significante, mas mais que isso, vou-junto do significante que crio: sou o significante.
Todo desenho, neste aspecto, é também explicado pela boa teoria de Marx de que afirma que o homem é fruto do seu trabalho, sua obra. Sorte daquele que, num mundo que virou máquina e virtualidade, ainda desenha com carvão.
Tento há tempos especializar-me em grafites (tento aprender as técnicas da gravura pelo mesmo motivo: praticar o “memento” de um “fóssil”, como se eu pudesse contribuir na história natural do traço como elemento da preservação do que está por ser extinto).
Gostaria aqui de mencionar o texto “Acerca da palavra desenho” de Flusser pela abordagem etimológica e semântica que introduz e que, a meu ver, não foi pensada até hoje.
Ele começa dizendo que em inglês design é tanto substantivo como verbo. Sendo substantivo significa intenção, plano, propósito, meta, conspiração malévola, conjura, forma, estrutura fundamental, mas relaciona tais significados com “ardil” e “malícia”. Como verbo, diz-nos, significa tramar algo, fingir, projetar, conformar, proceder estrategicamente. Depois menciona a latina signum e o alemão zeichnen. Desenhar significa ent-zeichnen, ou seja de-signar.
Com tudo isso o que ele quer é entender, semanticamente, como a palavra chegou ao seu significado atual.
Claro que Flusser está pensando mais em design (como desenho estratégico) do que no desenho como expressão da vida (aquilo que precisamos reservar) como buscamos discutir aqui, mas a pulga atrás da orelha que ele nos traz não pode ser esquecida. Comento isso, porque além de minha confiança no pensador Flusser, vejo que é o primeiro texto (dos escassos que existem sobre o tema) que me faz duvidar de algo implícito no desenho.
Ora, o que Flusser faz é usar a etimologia e a semântica para mostrar um aspecto da prática e também da instituição desenho que envolve o que ele denomina um contexto de “ardis e malícias”. E, segundo ele: “o desenhista é um conspirador malicioso que se dedica a fazer “trampas” (como li em espanhol, pois não achei o texto em português não sei se esta é a palavra original) ou “enganos”. A tais palavra ele relaciona as palavras máquina e mecânica próprias do universo de engenheiros e designers, bem como a palavra grega techné (ou técnica) e a palavra latina ars (arte) e a palavra alemã Kunst (arte, mas que carrega a etimologia do verbo Können, poder fazer e conhecer) e outras que, no desenrolar de nossa conversa, posso até trazer à tona. Por enquanto, gostaria apenas de colocar em cena este “engodo” presente no “desenho”.
Para Flusser, a cultura que conheça sua função de “embusteira” em relação à natureza que ela sempre engana, dará um caminho melhor para si mesma. O desenho está no fundamento de toda cultura, assim como você mesmo disse, estar na base de toda subjetividade nascente (desenho logo êxito, na sua apropriação do cogito cartesiano).
Para Flusser, é pelo desenho que deixamos de ser meros mamíferos e nos tornamos artistas livres e, além disso, deuses nascidos do artificial.
Ora, é o artifício que está na base do desenho. Sempre pensei o artifício, a ilusão como num trompe-l’oeil (uma desenho para iludir mesmo, como num escorço), um desenho que “parece fotografia” como algo que não teria problema algum. Em outras palavras, a percepção de Flusser me deixou assustada, serei eu uma “enganadora”. Mas se me torno o que desenho, torno-me embuste, engana-olho, eu também?
Engano quem? Por que quereria enganar? Se o design faz isso, faria isso também o nosso desenho?
Apenas proponho mais uma pergunta neste curtíssimo espaço. Devo ainda, ao analisar seu texto, orientar minhas palavras como perguntas, já que vc colocou diversas questões que me obrigam a pensar.
Um beijo,

Marcia

(imagem: desenho de Marcia Tiburi)

4 comentários:

Anônimo disse...

Desde já, desculpem-me todas as questões q serão colocadas e a falta de objetividade, mas todo esse diálogo erigiu-me muitas dúvidas e descobertas.
Bem, segundo o Fer, "o desenho é o 'gen' do pensamento; é o que vem antes". Mas é tb "uma ação do olho humano". Pergunto: existirá uma "falsa maiêutica" - se assim posso chamar - no desenhar, se ele tb toma "o nascimento da alma a partir do gesto", uma vez q o desenho é o q vem antes?
Falo por mim, pq não tenho a capacidade de dar á luz um eu-desenho, mas apenas de tornar um não-desenho em desenho a partir de uma 1ª imagem (ou melhor, objeto). Para mim, tudo isso é muito complicado de entender/ alcançar. Mas ponho apenas para dar idéia de minha grande confusão - e talvez, saná-la.
Como a Marcia, tb me pergunto se serei eu uma enganadora ou meu desenho um embuste. Não acho q me torne o q desenho, se considerar q não me-desenho, mas o-desenho.
Utilizo-me do escorço, ou não, talvez o contrário. Pois os objetos dos quais se originam meus desenhos são, geralmente, menores (objetos estes q já são imagens - mecânicos, fotográficos) q são, portanto, re-produzidos.
O desenho é, sim, um risco (um traço; um perigo). No entanto, voltando à questão, de q se ele 'nasce' a partir do olho, o q o torna relativo e político, um cego não seria capaz, nunca, de desenhar? (Ignorantemente pergunto, pois, realmente, não o sei. Pois, lembrando, que escrever/desenhar, segundo o Beto, não deve apresentar diferenças e eles, os cegos, o fazem), posto q tais atos sejam diferentes, porém iguais abstrações da humanindade.
Outra questão dificílima é a idéia de ética e estética, citada pelo Fer. A filosofia do desenho (ou da imagem) sobre o certo e o errado e o belo. Sendo assim, o belo DEVE ser ético? E vice-versa?
Enfim, confesso aqui meu desejo de, um dia, formar-me em Filologia e discutir nivelada e retoricamente com os queridos debatedores, não lhes desperdiçando o precioso tempo com questionamentos tais...

Beijos mil!

Fernando Chuí disse...

Puxa, Rafaela, suas questões são muitas e muito complexas. Espero poder trabalhar algumas delas na minha próxima fala/escrita. Mas sobre os cegos, penso em um desenho como alegoria concreta de um certo gesto de sensibilização, nde o olho não precise necessariamente ser o órgão que olha, mas a idéia do olhar como uma inteligência - algo que olha além do que se vê, ou seja, compreende a vida para além da superfície. Desta forma, um cego pode até olhar melhor que um outro sem nenum vestígio míope...
Beijos do Chuí

Anônimo disse...

Hummm... como a premissa que têm (tinham) os filósofos da natureza?! Segundo os quais, tudo, ou melhor, nada pode surgir do nada; pois precisa de uma 'substância primordial' - no caso, a idéia.
Se sim, ou mais ou menos, menos uma!

beijos!
vou aguardar...

Unknown disse...

gracias por estes pensamentos!
E CONVIDO SEUS AUTORES A PARTICIPAR NESTE PROJECTO "KUNST":

em www.warnungproject.blogspot.com

abraço
tudo d bom