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domingo, novembro 19, 2006

Memórias de um Sábio

Vivo dentro de mim
E vive dentro de mim uma guerra
Entre o mundo de dentro de mim
E o outro
[poema do livro Memórias de um Sábio]
.
Dedicado às queridas Rafaela e Harumi
.
Quando eu tinha catorze anos eu comecei a escrever poesia.
Desta imprudência surgiu um pequeno livro amarelo que serviu de abrigo para os meus versos até os dezessete anos.
O mais incrível era o título que abria esta peça: Memórias de um Sábio.
Não faço idéia do que me moveu a batizar de forma tão inapropriada aquele caderno de anotações poéticas, posto que eu era um mancebo imberbe entre acnes e, além de tudo, não havia ali o menor registro memorial da minha vida daquela época. Sem sinais de fatos ou pensamentos ocultos. Sem pistas das paixões ou das revistinhas proibidas. No entanto, talvez eu possa especular o porquê de tal infâmia imodesta.
(Como eu não sei mais realmente quem era aquele garoto que escrevia no caderno amarelo, sinto-me à vontade para citar e pensar seus versos, sem constrangimentos egóicos ou seja lá de que natureza...)
Quando se é criança costuma-se perguntar tudo e, mais ainda, adivinhar tudo. Em contrapartida, na adolescência - esta invenção moderna - temos menos vontade de perguntar e passamos a preferir a descoberta solitária das coisas e, num segundo momento, a expressão de nossas fundamentais idéias ao mundo.
Cerca de 400 anos a.C., Sócrates marcou a história de pensamento ocidental com seu famoso slogan "Só sei que nada sei". O primeiro poema do livro diz:"Às vezes caminho muito/por caminhos já caminhados/ Não chego a lugar nenhum/ onde todos me esperam". Uma espécie de releitura Socrática, algo como "Só sei que ninguém sabe bulhufas".
Quando se escreve um diário ou mesmo um romance a partir de lembranças do passado, os fatos parecem absolutamente relevantes para a compreensão de tudo. A poesia resgata uma outra forma de memória e também uma vertente menos comprometida da sabedoria. Funciona em um outro registro, o de uma parceria com o universo do inconsciente coletivo. Assim, os fatos tornam-se desimportantes, sendo que a memória é afetiva e alegórica - pouco interessa de que vida se está falando.
Para além da parceria com o inconsciente, há no livro minhas primeiras parcerias com Menezes, meu pai. Uma delas diz: "Idiota é quem aponta a estrelas e olha o dedo/ Mas não lhe dêem uma faca: se olhar as estrelas/Aponta o dedo/ Ou fura o único olho/ do Rei". Memórias familiares.
Tem também uma série que se repete ao longo do livro denominada como Frases Polidas. Escritos como "A loucura é a última fase da perfeição" ou "Quero encontrar alguém com quem eu possa ficar em silêncio à vontade". Memórias da ironia. Ou do desejo de amar.

Homens povoam o deserto

Homens que não sei
Em locais que não creio
Em mim
Eu nem me conheço

Homens povoam o deserto
o deserto dos espíritos
e o desejo
de não mais desejar

Homens constróem o futuro
e a paz sangra atrás da porta
E ladra a hipocrisia
E morde a estupidez

Estou cheio de desertos

[poema do livro Memórias de um Sábio]


O memorial é a busca do aconchego na ilusão de uma vida que se imagina ter vivido. Imagino que o insólito título tenha vindo da maneira que acabei encontrando para negar o que eu era. O adolescente possui uma coragem temperada de medos que lhe dá uma grande vontade de desabafo. Este título devia ser o desabafo de quem não tinha medo da verdade, algo como "Só sei que tudo sei!". Quando a única certeza da vida é o seu fim, a sabedoria sempre será uma ilusão. Assim como as memórias meramente factuais.

Esta é minha saudação àquele rapazinho que escreveu Memórias de um Sábio, por quem eu tenho hoje imenso carinho, e a quem não importava a completa ignorância para declarar sua poesia, sua sabedoria.

E àqueles que, nesta fase da vida, já têm o suficiente dela para viver, amar e morrer.

Amor
que me ensina a ensinar
que me ensina a ensinar a ensinar
E por entre os vãos da desconfiança
Acho minha parte esperança
Acho só
Não entendo
[poema do livro Memórias de um Sábio]

(Imagem: Folha de rosto de Memórias de um Sábio)

8 comentários:

Anônimo disse...

Fer, gostei muito dos poemas. Ficou muito legal. Acrescente mais, pois sào muito divertidos!

Roberta Martins disse...

engraçado vc falar de si em terceira pessoa, mais curioso é essa sua saída de si mesmo para se enxergar, mesmo não se reconhecendo como hoje. o que vc foi faz parte do seu presente. dá-lhe chuí!

Fernando Chuí disse...

Roberta, acho que o "eu" pode ser uma ilusão perigosa. Gosto de me pensar para além da primeira pessoa do singular. Ser também a terceira pessoa do singular(ele0, assim como a segunda do plural(nós). E eu sempre tive vontade de encontrar para bater papo com esses outros que já fui ou serei em outras épocas da minha vida. Aos 7, aos 14, aos 25, aos 40, etc...

Anônimo disse...

Oi Chuí, adorei o poema. Obrigada, saudades,
beijo,
Yone

Anônimo disse...

Fer,
gostei do modo com que se refere ao adolescente. Falando sobre essa vontade de descobrir, que é verdadeira. Mas o "só sei que nada sei" me é bastante vivo ainda.
Vc pouco citou o estereótipo adolescente, criado pelo outro, de que ele seja inconseqüente, 'sabe-tudo' e irresponsável - do que mais gostei - pois dessa premissa eu discordo. E me auto-repito: nunca fui adolescente! Não sei se isso é bom ou ruim - se é que pode-se dizer assim. Só sei (acho) que vivo bem assim.
Na minha confusão 'racional-emocional', eu escrevo e às vezes me encontro; outras, me perco. (Mas é bom!) A poesia tem dessas coisas - conduzir a algo incomum, a uma descoberta talvez. Mas de qualquer forma, ela é sempre prazerosa, bonita, libertadora.
Quanto a "Os homens que povoam o deserto", achei uma metáfora viva do caminhar (viver) juntos, porém sozinhos. E eu me encontro nessa multidão (acho que muitos tb) e permaneço perdida...
Até quando?

beijos!

Anônimo disse...

Minha velhice tem 16 anos. E isso talvez seja criticado. O que não me faz a menor diferença. O corpo tem 16, mas a alma é velha. Em sua mesmice ocupando as idéias. Chata. Gostaria de ficar só, nas montanhas de Zaratustra. Abandonar as idéias, e talvez dormir.
Obrigada Chuí!

Fernando Chuí disse...

Harumi, para seu consolo, eu sou hoje muito mais jovem do que há dezesseis anos atrás...

Anônimo disse...

Nando

Não sou nostálgico, mas é gostoso ver como temos estado juntos em tanta coisa.

Bjo

do